A proteção à dignidade da pessoa não prescreve. O entendimento é do ministro Luiz Fux, da 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. O ministro mandou a Justiça Federal do Rio de Janeiro analisar um processo que trata de pedido de indenização por danos morais. A ação foi ajuizada por Hélio da Silva, preso e torturado durante a ditadura militar.
Hélio da Silva entrou com a ação de indenização contra a União. Ele pede reparação de R$ 630 mil por danos materiais, R$ 151 mil por danos morais e pensão mensal vitalícia de R$ 1,5 mil. Alega que por causa das torturas sofridas, tem síndrome do pânico e paranóia de perseguição. As doenças o obrigam a se submeter a tratamento médico até hoje, de acordo com os autos.
A primeira instância negou o pedido. Considerou que o direito a indenização prescreveu. O Tribunal Regional Federal da 2ª Região manteve a sentença. Segundo os desembargadores, “a pretensão de ressarcimento de danos materiais e morais advindos dos atos de exceção perpetrados durante o período do Regime Militar é atingida pela prescrição após o decurso de 5 anos contados da promulgação da Constituição de 1988”.
O caso chegou ao STJ. A defesa de Hélio Silva afirmou que em casos em que se pede defesa dos direitos fundamentais, não cabe a prescrição de cinco anos, como prevê a Constituição. O ministro Luiz Fux acolheu o argumento. “A tortura e morte são os mais expressivos atentados à dignidade da pessoa humana, valor erigido como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil”, ressaltou.
“Não há falar em prescrição da pretensão de se implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade. Outrossim, a Lei 9.140/95, que criou as ações correspondentes às violações à dignidade humana, perpetradas em período de supressão das liberdades públicas, previu a ação condenatória no artigo 14, sem estipular-lhe prazo prescricional, por isso que a lex specialis convive com a lex generalis, sendo incabível qualquer aplicação analógica do Código Civil ou do Decreto 20.910/95 no afã de superar a reparação de atentados aos direitos fundamentais da pessoa humana, como sói ser a dignidade retratada no respeito à integridade física do ser humano”, concluiu.
A 5ª Turma determinou que a Justiça Federal do Rio volte a analisar o processo.
Leia a decisão
RECURSO ESPECIAL Nº 816.209 - RJ (2006/0022932-1)
RELATÓRIO
O EXMO. SR. MINISTRO LUIZ FUX (Relator): Trata-se de recurso especial interposto por HÉLIO DA SILVA, com fulcro no art. 105, inciso III, alíneas "a" e "c", da Carta Maior, no intuito de ver reformado acórdão prolatado pelo E. Tribunal Regional Federal da 2.ª Região, sob o fundamento de o mesmo ter malferido os arts. 8.º, § 3.º, do ADCT, da Constituição Federal de 1988; 14, da Lei n.º 9.140/95; a lei n.º 10.559/2002; bem como o art. 462 do Código de Processo Civil. Apontou, ainda, a existência de dissídio pretoriano acerca da questão posta nos autos.
Noticiam os autos que o ora recorrente, em 14/11/2000, ajuizou ação ordinária em desfavor da UNIÃO, ora recorrida, objetivando o pagamento de indenização a título de danos materiais, no valor de R$ 630.000,00 (seiscentos e trinta mil reais), e a título de danos morais, no valor de R$ 151.000,00, cento e cinqüenta mil reais, com o acréscimo de juros e correção monetária, bem como o pagamento de pensão vitalícia (parcelas vencidas e vincendas), no valor mensal de R$ 1.500,00 (mil e quinhentos reais), com efeitos financeiros a contar da entrada em vigor da Lei n.º 9.140/95).
Em sua exordial, o ora recorrente em síntese aduziu que, por ocasião de sua atuação política em defesa das Instituições Militares e contra o "Golpe Militar", de 31 de março de 1964, foi preso por agentes militares do 1.º Exército, em 29 de março de 1972, tendo sido torturado e, posteriormente, condenado pela Segunda Auditoria da Marinha à pena privativa de liberdade de 15 (quinze) anos, 07 (sete) meses e 06 (seis) dias, sendo libertado somente em 05/02/1980, por força da Lei de Anistia. Afirmou assim que, em conseqüência das torturas a que fora submetida, tornou-se portador de síndrome do pânico e "paranóia de perseguição", que o obrigaram a submeter-se a tratamentos médicos até os dias atuais. Alegou, ainda, que à época do ocorrido exercia a profissão de motorista, tendo sido demitido em 14 de março de 1972 por perseguição política.
O juízo federal de primeiro grau, reconhecendo a ocorrência, in casu, da prescrição qüinqüenal (Decreto n.º 20.910/32, art. 1.º), julgou extinto o processo com julgamento de mérito, condenando o autor da demanda ao pagamento de despesas processuais e honorários advocatícios, estes fixados em 10% sobre o valor da causa. Na ocasião, entendeu o i. Magistrado que o direito pleiteado pelo autor surgiu com o advento da Constituição Federal de 1988, que concedeu anistia a todos aqueles que participaram de atividades políticas no período de 18 de setembro de 1946 até a data da sua promulgação e, que, portanto, a prescrição qüinqüenal, prevista no art. 1.º do Decreto n.º 20.910/32, teria se efetivado em 05/10/1993.
Inconformado o autor da demanda, ora recorrente, interpôs recurso de apelação. Em suas razões aduziu ser imprescritível seu direito à indenização, previsto no art. 37, §6.º, da Constituição. Sustentou que, ainda que fosse aplicável o entendimento inserto na r. Sentença atacada, o termo inicial da contagem do aludido prazo prescricional haveria de ser a data do ato de anistia (07/10/1998) e não a data da promulgação da Carta Maior. Aduziu, finalmente, que com a edição da Lei n.º 10.599/02, que regulamentou o art. 8.º do ADCT, o Estado reconheceu seu direito, devendo, neste caso, ser afastada a prescrição consoante o disposto pelo art. 172, inciso V, do revogado Código Civil (art. 202, inciso VI, do Código Civil vigente).
A Sétima Turma Especializada do E. Tribunal Regional Federal da 2.ª Região, por unanimidade de votos dos seus integrantes, negou provimento ao apelo interposto, em aresto que restou assim ementado:
"PROCESSUAL CIVIL. REGIME MILITAR. ATOS DE EXCEÇÃO. DANOS MATERIAIS E MORAIS. PRESCRIÇÃO.
1 - A pretensão de ressarcimento de danos materiais e morais advindos dos atos de exceção perpetrados durante o período do Regime Militar é atingida pela prescrição após o decurso de 5 anos contados da promulgação da Constituição de 1988.
2 - O advento da Lei n.º 10.599/02 não enseja um reconhecimento, por parte do Governo, do direito do autor, visto que este se deu com a própria promulgação da Constituição, sendo a citada lei editada apenas para regulamentar o art. 8.º do ADCT.
3 - Recurso improvido."
Em face do v. acórdão prolatado, o então apelante opôs embargos de declaração, por meio dos quais noticiou a Corte a quo a superveniência de fato novo, que a seu ver seria suficiente para refutar a tese da prescrição de sua pretensão, qual seja, a publicação no D.O.U. de 28/05/2004 do deferimento de seu pedido de anistia formulado em requerimento dirigido à Comissão de Anistia instituída junto ao Ministério da Justiça.
Após ter seus embargos desprovidos pela Corte de origem, o autor da demanda, ainda irresignado com o teor do aresto prolatado, interpôs o recurso especial que ora se apresenta, apontando a existência de ofensa aos arts. 8.º, § 3.º, do ADCT, da Constituição Federal de 1988; 14, da Lei n.º 9.140/95; a lei n.º 10.559/2002; bem como o art. 462 do Código de Processo Civil. Aduziu, ainda, em sua irresignação, a existência de dissídio pretoriano viabilizador do apelo nobre pela alínea "c" do permissivo constitucional, colacionando como paradigmas arestos desta Corte Superior e de outros tribunais, que esposam o entendimento de que "em casos em que se postula a defesa de direitos fundamentais, indenização por danos morais decorrentes de atos de tortura por motivo político ou de qualquer outra espécie, não há que prevalecer a imposição qüinqüenal prescritiva" (REsp n.º 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado).
Em suas razões recursais aduz o recorrente, in verbis:
"(...) Em suas razões de decidir, o acórdão regional de fls. 119/124, assim fundamentou, in verbis: 'Concedida, porém, anistia aos perseguidos políticos pelo art. 8.º do ADCT, cumpria ao interessado requerer ao Estado, administrativamente ou judicialmente, a constituição de sua situação jurídica, no prazo de cinco anos da promulgação da Constituição, ou seja, até o dia 05/10/93'.
Ora, é explícita a violação ao § 3.º, do art. 8.º, do ADCT, da Constituição Federal, quando o r. acórdão recorrido atribui prazo para o requerimento do Recorrente com relação aos danos morais decorrentes das humilhações e torturas sofridas durante o período em que esteve preso nas dependências do Estado. Na verdade, a violação consiste em determinar prazo que o Legislador não previu.
Cumpre esclarecer ainda que, se não bastasse essa determinação temporal exigida no r. acórdão recorrido, este desconsiderou a Lei n.º 9.140/95, no seu art. 14, bem como a Lei n.º 10.599/02 que regulamentou o art. 8.º do ADCT.
(...)."
A União apresentou suas contra-razões ao apelo nobre (fls. 162/171), pugnando, preliminarmente, pela inadmissão do mesmo face à ausência de prequestionamento dos dispositivos apontados pelo recorrente como malferidos. No mérito, expendeu considerações a favor da tese esposado pelo aresto ora hostilizada, afirmando que a pretensão do autor, ora recorrente, encontra-se fulminada pelo instituto da prescrição qüinqüenal, consoante o disposto no art. 1.º do Decreto n.º 20.910/32. Neste ínterim, colacionou precedentes de outros tribunais que não guardam qualquer similitude com a questão versada nos autos (fls. 167/169).
Na origem, em exame prévio de admissibilidade, o presente recurso especial recebeu crivo positivo, ascendendo assim à esta Corte Superior.
É o relatório.
RECURSO ESPECIAL Nº 816.209 - RJ (2006/0022932-1)
EMENTA
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. INDENIZAÇÃO. REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E MORAIS. REGIME MILITAR. PERSEGUIÇÃO, PRISÃO E TORTURA POR MOTIVOS POLÍTICOS. IMPRESCRITIBILIDADE. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. INAPLICABILIDADE DO ART. 1.º DO DECRETO N.º 20.910/32.
1. Recurso especial que versa acerca da delicada questão da prescritibilidade das ações tendentes a reparar a violação aos direitos humanos ou direitos fundamentais da pessoa humana, como sói ser a proteção da sua dignidade lesada pela tortura e prisão por delito de opinião durante o Regime Militar de exceção.
2. A indenização pretendida tem amparo constitucional no art. 8.º, § 3.º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
3. Deveras, a tortura e morte são os mais expressivos atentados à dignidade da pessoa humana, valor erigido como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
4. Sob esse ângulo, dispõe a Constituição Federal:
"Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...) III - a dignidade da pessoa humana;"
"Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes;
(...)III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;"
5. Destarte, o egrégio STF assentou que:
"...o delito de tortura - por comportar formas múltiplas de execução - caracteriza- se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade. - A norma inscrita no art. 233 da Lei nº 8.069/90, ao definir o crime de tortura contra a criança e o adolescente, ajusta-se, com extrema fidelidade, ao princípio constitucional da tipicidade dos delitos (CF, art. 5º, XXXIX). A TORTURA COMO PRÁTICA INACEITÁVEL DE OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA. A simples referência normativa à tortura, constante da descrição típica consubstanciada no art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, o gesto ominoso de ofensa à dignidade da pessoa humana. A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete - enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva - um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo." (HC 70.389/SP, Rel. p. Acórdão Min. Celso de Mello, DJ 10/08/2001)
6. À luz das cláusulas pétreas constitucionais, é juridicamente sustentável assentar que a proteção da dignidade da pessoa humana perdura enquanto subsiste a República Federativa, posto seu fundamento.
7. Consectariamente, não há falar em prescrição da pretensão de se implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir, correspondente ao direito inalienável à dignidade.
8. Outrossim, a Lei n.º 9.140/95, que criou as ações correspondentes às violações à dignidade humana, perpetradas em período de supressão das liberdades públicas, previu a ação condenatória no art. 14, sem estipular-lhe prazo prescricional, por isso que a lex specialis convive com a lex generalis, sendo incabível qualquer aplicação analógica do Código Civil ou do Decreto n.º 20.910/95 no afã de superar a reparação de atentados aos direitos fundamentais da pessoa humana, como sói ser a dignidade retratada no respeito à integridade física do ser humano.
9. Adjuntem-se à lei interna, as inúmeras convenções internacionais firmadas pelo Brasil, a começar pela Declaração Universal da ONU, e demais convenções específicas sobre a tortura, tais como a Convenção contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU, a Conveção Interamericana contra a Tortura, concluída em Cartagena, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
10. A dignidade humana violentada, in casu, pode ter decorrido, consoante noticiado pelo autor da demanda em sua exordial, de perseguição política que lhe fora imposta, prisão e submissão a atos de tortura durante o Regime Militar de exceção, sendo possível revelarem-se os referidos atos como flagrantes atentados ao mais elementar dos direitos humanos, que segundo os tratadistas, são inatos, universais, absolutos, inalienáveis e imprescritíveis.
11. A exigibillidade a qualquer tempo dos consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz, razão por que a Declaração Universal inaugura seu regramento superior estabelecendo no art. 1.º que "todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos".
12. Deflui da Constituição federal que a dignidade da pessoa humana é premissa inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a existência, no seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e o direito processual.
13. O egrégio STJ, em oportunidades ímpares de criação jurisprudencial, vaticinou:
"ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE POLÍTICA. PRISÃO E TORTURA. INDENIZAÇÃO. LEI Nº 9.140/1995. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. REABERTURA DE PRAZO.
1. Ação de danos morais em virtude de prisão e tortura por motivos políticos, tendo a r. sentença extinguido o processo, sem julgamento do mérito, pela ocorrência da prescrição, nos termos do art. 1º, do Decreto nº 20.910/1932. O decisório recorrido entendeu não caracterizada a prescrição.
2. Em casos em que se postula a defesa de direitos fundamentais, indenização por danos morais decorrentes de atos de tortura por motivo político ou de qualquer outra espécie, não há que prevalecer a imposição qüinqüenal prescritiva.
3. O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais conseqüentes da sua prática.
4. A imposição do Decreto nº 20.910/1932 é para situações de normalidade e quando não há violação a direitos fundamentais protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Constituição Federal.
5. O art. 14, da Lei nº 9.140/1995, reabriu os prazos prescricionais no que tange às indenizações postuladas por pessoas que, embora não desaparecidas, sustentem ter participado ou ter sido acusadas de participação em atividades políticas no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e, em conseqüência, tenham sido detidas por agentes políticos.
6. Inocorrência da consumação da prescrição, em face dos ditames da Lei nº 9.140/1995. Este dispositivo legal visa a reparar danos causados pelo Estado a pessoas em época de exceção democrática. Há de se consagrar, portanto, a compreensão de que o direito tem no homem a sua preocupação maior, pelo que não permite interpretação restritiva em situação de atos de tortura que atingem diretamente a integridade moral, física e dignidade do ser humano.
7. Recurso não provido. Baixa dos autos ao Juízo de Primeiro Grau." (REsp n.º 379.414/PR, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJU de 17/02/2003)
14. Recurso especial provido, para afastar do caso em espécie a aplicação da norma inserta no art. 1.º do Decreto n.º 20.910/32, determinando-se o retorno dos autos à instância de origem, para que se dê regular prosseguimento ao feito indenizatório.
VOTO
O EXMO. SR. MINISTRO LUIZ FUX (Relator): Prequestionada ainda que implicitamente a questão federal versada pelos dispositivos legais apontados pelo recorrente como violados e restando devidamente preenchidos os demais pressupostos de admissibilidade recursal.
Prima facie, tenho por oportuno frisar que a pretensão indenizatória do ora recorrente tem amparo constitucional no art. 8.º, § 3.º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Cinge-se a presente controvérsia à delicada questão da prescritibilidade das ações tendentes a reparar a violação aos direitos humanos ou direitos fundamentais da pessoa humana, como sói ser a proteção da sua dignidade lesada pela tortura e prisão por delito de opinião, pelo que impõe-se resolver se aplicável ao caso em espécie o prazo prescricional qüinqüenal, de que trata o art. 1.º, do Decreto n.º 20.910/32.
Neste particular, tenho que a solução há de ser negativa, o que revela assistir razão ao ora recorrente e ser merecedor de reparos o v. aresto hostilizado.
Assim faz-se oportuna a lição do professor Almir de Oliveira, que em sua obra sobre os direitos humanos, ao analisar a dignidade da pessoa humana ao ângulo dos direitos humanos, sua proteção judicial e sua prescritibilidade, vaticina:
"...a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama que 'o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo' (Preâmbulo), e afirma no art. 1º que 'todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos'.
(...)
Cumpre, pois avançar para além das explicações puramente naturalistas, que situam esses atributos na corporalidade do homem, se se quiser construir uma sociedade que, considerando 'o homem acima do animal', veja nele um ser que transcende de sua animalidade para os planos superiores do espírito para ser pessoa. Só assim compreenderemos o sentido de sua dignidade, que, sendo-lhe inerente, é inalienável, inviolável.
A dignidade da pessoa humana é um dado transcendente e suporte indispensável de qualquer organização social que afirme a existência de Direitos Humanos fundamentais e se disponha a torná-los efetivos e assegurados pela sociedade e pelo Estado, como um bem impostergável.
A pessoa humana é o pressuposto dos direitos humanos. Dir-se-á, com acerto, que o é de todo o Direito. Ela é o antecedente necessário, do qual os direitos humanos são o conseqüente. Estes existem em razão dela e têm o seu fundamento na sua natureza. São-lhe inerentes. Nascem com ela e para ela. Não foi sem razão que Protágoras, no século V, a.C, sentenciou que 'o homem é a medida de todas as coisas', as quais a ele devem subordinar-se no sentido de sua realização. Não se entenda isso como expressão de individualismo, mas, de verdadeiro humanismo, que vê o homem como expressão de um universo de seres da mesma espécie, de onde se tira o princípio - todos nascem livre e iguais em dignidade e direitos, inscrito na Declaração Universal de Direitos Humanos. Sem o reconhecimento dos direitos fundamentais da pessoa humana, esta ficará degradada e enfraquecida, à mercê dos caprichos do que Luíz Recaséns Siches denomina transpersonalismo, para o qual'no homem se encarnam valores somente enquanto ele é parte do Estado ou é veículo dos produtos objetivados da cultura, isto é, que o homem individual, como tal, carece de uma dignidade própria e que só é posto em questão valorativamente quando sirva de modo efetivo a fins transpessoais do Estado (glória, poder, conquista, etc.) ou das obras objetivas da cultura'. A isso se opõem os direitos humanos.
Embora deva ter em boa conta o interesse coletivo e o do Estado, o Direito deve ter como objetivo principal a pessoa humana. É que, se esta não estiver na base da formação do Direito, a sociedade estará irremediavelmente sujeita a ser tratada como um rebanho de indivíduos padronizados pelo Estado plenipotente, contra o qual, fora do qual e acima do qual nada se admitirá, na fórmula concisa de Mussolini, ao definir o fascismo.
A ordem social há que ser construída com base na pessoa humana, que é a primeira realidade com que depara o Direito. Primeira realidade social, ela é a primeira realidade jurídica, pois sem ela não ocorrerá nenhum fato nem ato algum de interesse jurídico. Não vai nisto uma concepção individualista do Direito, a cujo sentido social devemos estar atentos, pois a sociedade é também uma realidade indiscutível, na qual se operam os fatos e atos jurídicos. Como ensina Miguel Reale: 'Há uma tensão constante entre os valores do indivíduo e os valores da sociedade, donde a necessidade permanente de composição entre esses grupos de fatores, de maneira que venha a ser reconhecido o que toca ao indivíduo em uma ordenação progressivamente capaz de harmonizar as duas forças'.
Para os direitos humanos em particular, não se deve relegar a plano secundário a pessoa humana, primeira destinatária do Direito e de cuja preservação este se ocupa, no que lhe cabe. Sem que se tenha em conta a pessoa, a expressão - sentido social do Direito não tem nenhuma significação. Porque, como ensina Legaz y Lacambra, 'o Direito é a vida humana, que é a vida da pessoa, e com isto atingimos o dado jurídico fundamental, a realidade jurídica fundamental, que é a pessoa humana convivente.
(...)
Há, por isto, um direito absolutamente fundamental para o homem, base de todos os demais: o direito de ser reconhecido como pessoa humana.
(...)
Alicerçados, pois, numa conceituação do homem como pessoa, teremos como direitos humanos fundamentais aqueles que, inerentes a ela, não lhe podem ser negados, mas, ao contrário, lhe devem ser reconhecidos pelas outras pessoas em particular, pela sociedade em geral e pelo Estado, que lhes devem acatamento, respeito e proteção.
(...)
Constitui princípio jurídico fundamental que a todo direito corresponde uma ação que o assegure. Realizar este princípio é a tarefa do Direito Processual nos seus desdobramentos civil e comercial, penal, trabalhista e administrativo, cada um na sua esfera de aplicação específica, sempre que haja necessidade de realizar-se uma pretensão, prevenir ou repelir uma violação de direito. Para assegurar a efetividade dos Direitos Humanos, a Constituição brasileira oferece os seguintes institutos de Direito Processual, contidos no art. 5º, dentro do Título II - Dos Direitos e Garantias Individuais: o habeas corpus, contra a ameaça ou o uso da violência impeditivas do direito à liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso do poder; o manado de segurança, para proteger direito líquido e certo não amparado por habeas corpus ou habeas data, quando a violação do direito se der por autoridade pública ou por pessoa jurídica no exercício de atribuições do poder público; o mandado de injunção, para compelir o Estado a produzir norma regulamentadora que viabilize o exercício dos direitos e liberdades fundamentais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania; o habeas data, para assegurar à pessoa o conhecimento de informações que, a seu respeito, constem de registros ou banco de dados de entidades governamentais, ou de caráter público, bem assim para a modificação desses dados; a ação civil pública, para a proteção do meio ambiente e de outros direitos difusos e coletivos. Além disso, a Constituição dispõe, pelo mesmo art. 5º, XXXV, que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão de direito ou ameaça a direito. A disposição constitucional, aqui referida, harmoniza-se com o disposto no art. VIII da Declaração Universal de Direitos Humanos, segundo o qual 'toda pessoa tem direito a um recurso efetivo, ante os tribunais competentes, que a ampare contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição ou pela lei'. Os arts. X e XI da mesma Declaração completam o sentido do VIII. Como se vê, temos, inscrito na Constituição brasileira, o direito ao uso de instrumentos processuais para a defesa de direitos que a mesma Constituição e as leis do País asseguram à pessoa humana, instrumentos esses representados pelos institutos de Direito Processual, aqui mencionados, que compõem o quadro dos direitos e garantias fundamentais do homem. Tem-se, por esta mostra, a relação entre os Direitos Humanos e o Direito Processual, este asegurando o exercício daqueles.
(...)
Quem muito bem explicou as características dos Direitos Humanos foi o jurista chileno Hübner Gallo. No seu entender, esses direitos caracterizam-se como:
- inatos, ou congênitos,
- universais,
- absolutos,
- necessários,
- inalienáveis,
- invioláveis,
- imprescritíveis.
Porque o homem nasce com eles, como atributos inerentes a todo ser humano, diferentemente do que ocorre com outros direitos - que são adquiridos no decorrer da existência, mediante outorga do Estado, ou ajustes interpessoais, ou prática de atos autorizados por lei, são eles inatos.
Porque se estendem a todos os seres humanos, em todo tempo e lugar, sem discriminação qualquer e em razão da unidade essencial da natureza do homem, seja qual for sua condição histórica ou geográfica, sua raça, seu sexo, sua idade, ou situação concreta na sociedade, são eles universais.
Porque seu acatamento e respeito se impõem a toda pessoa natural ou jurídica de direito público ou privado, bem como à sociedade inteira, são eles absolutos.
Porque não derivam de uma eventualidade, mas exprimem um imperativo da própria natureza da pessoa humana, são eles necessários.
Porque pertencem de modo indissolúvel à essência mesma do homem, sem que possa dele separar-se, não podem ser transferidos a outrem, a qualquer título, diferentemente do que acontece com os direitos que podem ser objeto de transação jurídica, são inalienáveis.
Porque ninguém, nem mesmo a autoridade legalmente constituída, pode legitimamente atentar contra eles, sem prejuízo das justas limitações a que estejam sujeitos em favor do bem comum, são invioláveis.
Porque não estão sujeitos a nenhum prazo legal para serem exercidos por que são inalienáveis e necessários e são exigíveis a qualquer tempo, são imprescritíveis." (OLIVEIRA, Almir de. "Curso de Direitos Humanos". Rio de Janeiro: Forense, 2000, pp. 11/14, 58/59 e 97/98.)
Corroborando a tese da imprescritibilidade, sobressaem as doutrinas de Carlos da Rocha Guimarães e Alexandre de Moraes, respectivamente:
"(...) Além dos direitos cujas ações são sujeitas a prescrição e dos direitos que, por não chegarem a se constituir (decadência), não chegam a ter a possibilidade de serem exercidos por meio de uma ação, existe uma classe de direitos aos quais parte da doutrina atribui direitos de ação chamados de imprescritíveis.
Amorim Filho critica, acertadamente, essa adjetivação, quando abrangente de todas ações, pelo fato de que acaba por se aplicar também àquelas que se mostrem impotentes não por estarem prescritas, mas pela caducidade dos direitos que lhes dariam suporte (direitos potestativos).
Propõe, conseqüentemente, que se denominem tais ações de perpétuas, pois, segundo a tese que defende, e que aceitamos, a imprescritibilidade se referia somente a ações decorrentes de direitos a uma prestação ou direitos lesados, quando existem também ações decorrentes de direitos potestativos, não objeto de prescrição da ação, mas de decadência do direito, que seriam também incluídas em tal denominação, o que mostra a sua imprecisão.
Desde que se queira colocar a tônica da nomenclatura nas ações, a denominação proposta por Amorim Filho é, sem dúvida, mais técnica.
No entanto, não nos parece de rigor englobar, em uma única denominação (perpétua), ações insuscetíveis de prescrição e ações que constituam meio específico para o exercício de um direito a criar direito (direito potestativo).
Com efeito, no primeiro caso, já existe, como tivemos ocasião de salientar, um direito constituído, munido de conseqüente dirieto de ação que não prescreveria, ao passo que, no segundo caso, a ação não tem propriamente a característica de um direito (se é que alguma vez o tenha), mas de um meio de manifestação da vontade para constituir, desconstituir ou modificar um direito.
Em conseqüência, parece-nos que, a exemplo do que acontece na teoria das sentenças, e também na teoria da distinção entre prescrição e decadência, melhor será denominar as ações de acordo com a natureza dos direitos a que acedem.
Sob esse ponto de vista, as ações imprescritíveis corresponderiam a direitos constituídos de eficácia perpétua.
Reservar-se-ia a denominação da ações perpétuas para aquelas que constituíssem meios de manifestação da vontade para criar direito.
Como quer que seja, como o fundo da questão é examinar se existem direitos que gozariam do privilégio de serem munidos de eficácia perpétua, não passíveis, em conseqüência, de terem o seu direito de ação sujeito a prescrição ou de terem a manifestação de vontade, meio de seu exercício, sujeita a decadência, e, portanto, a impedimento do ingresso válido em juízo, cabe examinar em separado, com toda clareza, os dois casos, pois, na realidade, não se situam no mesmo plano dogmático.
(...)
Se, como vimos, tem cabimento continua a denominar de imprescritíveis os direitos de ação que não prescrevem, é porque são eles o meio de atuar a eficácia de direitos constituídos (direitos a uma prestação, direito de agir contra uma lesão).
Em conseqüência, tais ações só são imprescritíveis, repita-se, porque constituem o meio formal de atuação de direitos constituídos perpétuos.
Embora a expressão direitos constituídos perpétuos seja pleonástica, dado que, como vimos acima, os direitos, em geral, não perecem, a não ser quando perece o seu objeto (v. art. 77 do Cód. Civil), vale o objetivo final como um reforço do que queremos dizer.
Como regra, pois, os direito são perpétuos, permanentes, extinguindo-se somente uma das variantes da sua eficácia, isto é, o direito de ação, quando assim previsto em lei.
Em conseqüência, formalmente, direitos perpétuos são aqueles cujo correspondente direito de ação é imprescritível.
No entanto, por que motivo algumas ações seriam prescritíveis e outras não?
Como a prescrição tem a função de limitar a eficácia dos direitos, em decorrência da não atuação dessa eficácia pelo titular do direito (não uso do direito de ação), é evidente que, ontologicamente, fazer-se depender a permanência da eficácia , por tempo ilimitado, da não previsão de um prazo de prescrição da ação, que protege esse direito, é declaração tautológica, pois à não existência de prescrição corresponde, por definição, um direito previamente considerado como devendo ser perpétuo.
Temos, pois, de indagar, para sair desse círculo lógico, por que razão alguns direitos têm sua eficácia limitada no tempo, ao passo que outros seriam perpétuos, ou melhor, teriam eficácia permanente?
Como já tivemos ocasião de observar acima, os direitos, em princípio, têm eficácia ilimitada no tempo, não perecem, o que levaria, em princípio, a parecer incompreensível a existência da prescrição.
No entanto, o que é fato é que ela existe no direito positivo.
Para quebrar o círculo lógico, é evidente que temos de fazer o salto ontológico, isto é, buscar o fundamento pelo qual certos direitos perderiam parte de sua eficácia e outros não.
Para tanto, faz-se necessário repensar o conceito de direito.
Como bem salientou Kelsen, ao direito pessoal (subjetivo) corresponde um 'dever ser', uma norma individual.
Se o direito subjetivo e a correspondente obrigação têm a mesma natureza da norma (ser um dever ser), um exame da natureza desta pode levar-nos a uma melhor compreensão da natureza daqueles.
(...)
Direitos indisponíveis. Direitos fundamentais.
A razão da tal distinção é óbvia: há direitos que, embora investidos no indivíduo pela ordem jurídica, não podem ser considerados como meros direitos individuais.
Tais direitos são isso, mais são mais do que isso: são também parte integrante da estrutura básica do sistema jurídico como expressão do sistema social.
Nesse sentido, são direitos fundamentais, dado que, constituindo elemento da trama do fundamento do sistema jurídico considerado, não podem deixar de existir sem que seja atingido, ao mesmo tempo, um dos fundamentos do sistema.
Em conseqüência, ao serem atribuídos esses direitos ao indivíduo, é-lhes também atribuído um dever de preservar-lhe o objeto, sendo, nesse sentido, indisponíveis.
Tais direitos não podem ser negociados, são perpétuos, permanentes, não perdendo jamais, em princípio, a sua eficácia.
Se a perdem, é porque a própria ordem jurídica assim estabelece, em certos casos, por considerar que a quebra desse direito se justifica para proteger situações consideradas mais fundamentais.
Não se trata, pois, de direitos naturais, mas, cabe repetir, de direitos fundamentais de determinada ordem jurídica (direito positivo), pois o direito positivo é direito cujo fundamento é justamente ser positum (Kelsen); assim, põe-se, fundamenta-se pela sua própria existência, como a posita urbs (Virgílio), isto é, a cidade fundamenta." (GUIMARÃES, Carlos da Rocha. "Prescrição e Decadência. Rio de Janeiro: Forense, 1984, pp. 169/174)
---------------------------------------------------------
"(...) A previsão desses direitos coloca-se em elevada posição hermenêutica em relação aos demais direitos previstos no ordenamento jurídico, apresentando diversas características: imprescritibilidade, inalienabilidade, irrenunciabilidade, inviolabilidade, universalidade, efetividade, interdependência e complementariedade:
- imprescritibilidade: os direitos humanos fundamentais não se perdem pelo decurso do prazo;
- inalienabilidade: os direitos humanos fundamentais não podem ser objeto de renúncia. Dessa característica surgem discussões importantes na doutrina e posteriormente analisadas, como a renúncia ao direito à vida e a eutanásia, o suicídio e o aborto;
- inviolabilidade: impossibilidade de desrespeito por determinações infraconstitucionais ou por atos das autoridades públicas, sob pena de responsabilização civil, administrativa e criminal;
- universalidade: a abrangência desses direitos engloba todos os indivíduos, independente de sua nacionalidade, sexo, raça, credo ou convicção político-filosófica;
- efetividade: a atuação do Poder Público deve ser no sentido de garantir a efetivação dos direitos e garantias previstos, com mecanismos coercitivos para tanto, uma vez que a Constituição Federal não se satisfaz com o simples reconhecimento abstrato;
- interdependência: as várias previsões constitucionais, apesar de autônomas, possuem diversas intersecções para atingirem suas finalidades. Assim, por exemplo, a liberdade de locomoção está intimamente ligada à garantia do habeas corpus, bem como previsão de prisão somente por flagrante delito ou por ordem da autoridade judicial competente;
- complementariedade: os direitos humanos fundamentais não devem ser interpretados isoladamente, mas sim de forma conjunta com a finalidade de alcance dos objetivos previstos pelo legislador constituinte.
(...)
Assim, a classificação adotada pelo legislador constituinte estabeleceu espécies ao gênero direitos e garantias fundamentais:
- direitos individuais e coletivos - correspondem aos direitos diretamente ligados ao conceito de pessoa humana e de sua própria personalidade, como, por exemplo: vida, dignidade, honra, liberdade.
(...)
Pimenta Bueno, analisando a Constituição do Império, apresentava-nos uma divisão tripartida dos direitos fundamentais em relação às pessoas: direitos naturais ou individuais, direitos civis e direitos políticos, para concluir afirmando que:
'os primeiros são filhos da natureza, pertencem ao homem porque é homem, porque é um ente racional e moral, são propriedades suas e não criaturas da lei positiva, são atributos, dádivas do Criador.'" (MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2002, p. 41/45)
Não bastasse a doutrina hodierna a infirmar a tese do aresto recorrido, socorrem-nos a jurisprudência de nossos tribunais superiores. Nesse sentido julgados do Supremo Tribunal Federal, verbis:
"TORTURA CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE - EXISTÊNCIA JURÍDICA DESSE CRIME NO DIREITO PENAL POSITIVO BRASILEIRO - NECESSIDADE DE SUA REPRESSÃO - CONVENÇÕES INTERNACIONAIS SUBSCRITAS PELO BRASIL - PREVISÃO TÍPICA CONSTANTE DO ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (LEI Nº 8.069/90, ART. 233) - CONFIRMAÇÃO DA CONSTITUCIONALIDADE DESSA NORMA DE TIPIFICAÇÃO PENAL - DELITO IMPUTADO A POLICIAIS MILITARES - INFRAÇÃO PENAL QUE NÃO SE QUALIFICA COMO CRIME MILITAR - COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM DO ESTADO-MEMBRO - PEDIDO DEFERIDO EM PARTE. PREVISÃO LEGAL DO CRIME DE TORTURA CONTRA CRIANÇA OU ADOLESCENTE - OBSERVÂNCIA DO POSTULADO CONSTITUCIONAL DA TIPICIDADE.
(...) o delito de tortura - por comportar formas múltiplas de execução - caracteriza- se pela inflição de tormentos e suplícios que exasperam, na dimensão física, moral ou psíquica em que se projetam os seus efeitos, o sofrimento da vítima por atos de desnecessária, abusiva e inaceitável crueldade. - A norma inscrita no art. 233 da Lei nº 8.069/90, ao definir o crime de tortura contra a criança e o adolescente, ajusta-se, com extrema fidelidade, ao princípio constitucional da tipicidade dos delitos (CF, art. 5º, XXXIX). A TORTURA COMO PRÁTICA INACEITÁVEL DE OFENSA À DIGNIDADE DA PESSOA. A simples referência normativa à tortura, constante da descrição típica consubstanciada no art. 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, exterioriza um universo conceitual impregnado de noções com que o senso comum e o sentimento de decência das pessoas identificam as condutas aviltantes que traduzem, na concreção de sua prática, o gesto ominoso de ofensa à dignidade da pessoa humana. A tortura constitui a negação arbitrária dos direitos humanos, pois reflete - enquanto prática ilegítima, imoral e abusiva - um inaceitável ensaio de atuação estatal tendente a asfixiar e, até mesmo, a suprimir a dignidade, a autonomia e a liberdade com que o indivíduo foi dotado, de maneira indisponível, pelo ordenamento positivo. NECESSIDADE DE REPRESSÃO À TORTURA - CONVENÇÕES INTERNACIONAIS. - O Brasil, ao tipificar o crime de tortura contra crianças ou adolescentes, revelou-se fiel aos compromissos que assumiu na ordem internacional, especialmente àqueles decorrentes da Convenção de Nova York sobre os Direitos da Criança (1990), da Convenção contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU (1984), da Convenção Interamericana contra a Tortura concluída em Cartagena (1985) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), formulada no âmbito da OEA (1969)." (HC n.º 70.389/SP, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, Rel. p. Acórdão Min. Celso de Mello, DJU de 23/06/1994)
"PROVA - REALIZAÇÃO - DEFESA - EXERCÍCIO.
O direito de defesa confunde-se com a noção de devido processo legal, além de, preservado, atender aos reclamos decorrentes do fundamento da República Federativa do Brasil que é a dignidade da pessoa humana - artigos 1º e 5º, inciso LV, da Constituição Federal. Ambígua a situação, tal direito há de ser viabilizado à exaustão (Coqueijo Costa), óptica robustecida quando em jogo o exercício da liberdade de ir e vir." (HC n.º 80.031/RS, Segunda Turma., Rel. Min. Maurício Corrêa, Rel. p. Acórdão, Min. Marco Aurélio, DJU de 16/05/2000)
No mesmo sentido confiram-se, à guisa de exemplo, julgados desta Corte, assim ementados:
"ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE POLÍTICA DURANTE A DITADURA MILITAR. PRISÃO E TORTURA. INDENIZAÇÃO. LEI Nº 9.140/1995. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. REABERTURA DE PRAZO.
I - 'Em casos em que se postula a defesa de direitos fundamentais, indenização por danos morais decorrentes de atos de tortura por motivo político ou de qualquer outra espécie, não há que prevalecer a imposição qüinqüenal prescritiva.' (REsp nº 379.414/PR, Relator Ministro JOSÉ DELGADO, DJ de 17/02/2003, p. 225)
II - O artigo 14 da Lei nº 9.140/95 não restringiu seu alcance aos desaparecidos políticos, pelo contrário, ele abrangeu todas as ações indenizatórias decorrentes de atos arbitrários do regime militar, incluindo-se aí os que sofreram constrições à sua locomoção e torturas durante a ditadura militar. Em assim fazendo, reabriram-se os prazos prescricionais quanto às indenizações pleiteadas pelas pessoas ilegalmente presas e torturadas durante o período.
III - Recurso especial improvido." (REsp n.º 529.804/PR, Primeira Turma, Rel. Min. Francisco Falcão, DJU de 24/05/2004)
"RECURSO ESPECIAL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. PRISÃO, TORTURA E MORTE DO PAI E MARIDO DAS RECORRIDAS. REGIME MILITAR. ALEGADA PRESCRIÇÃO. INOCORRÊNCIA. LEI N. 9.140/95. RECONHECIMENTO OFICIAL DO FALECIMENTO, PELA COMISSÃO ESPECIAL DE DESAPARECIDOS POLÍTICOS, EM 1996. DIES A QUO PARA A CONTAGEM DO PRAZO PRESCRICIONAL.
A Lei n. 9.140, de 04.12.95, reabriu o prazo para investigação, e conseqüente reconhecimento de mortes decorrentes de perseguição política no período de 2 de setembro de 1961 a 05 de outubro de 1998, para possibilitar tanto os registros de óbito dessas pessoas como as indenizações para reparar os danos causados pelo Estado às pessoas perseguidas, ou ao seu cônjuge, companheiro ou companheira, descendentes, ascendentes ou colaterais até o quarto grau.
Na hipótese em exame, o reconhecimento, pela Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos, do falecimento, em 1973, de Jarbas Pereira Marques, pai e esposo das recorridas, deu-se com a publicação do Extrato da Ata da Terceira Sessão Ordinária realizada em 08 de fevereiro de 1996 (fl. 250), dies a quo para a contagem do prazo prescricional.
Com efeito, o prazo de prescrição somente tem início quando há o reconhecimento, por parte do Estado, da morte da pessoa perseguida na época do regime de exceção constitucional, momento em que seus familiares terão tomado ciência definitiva e oficial de seu falecimento por culpa do Estado.
Dessarte, ante a ausência de qualquer reconhecimento oficial pelo Estado do falecimento de Jarbas Pereira Marques até o ano de 1996, a prescrição deve ser afastada, uma vez que o ajuizamento da ação deu-se em 02 de fevereiro de 1993.
Ainda que assim não fosse, em se tratando de lesão à integridade física, deve-se entender que esse direito é imprescritível, pois não há confundi-lo com seus efeitos patrimoniais reflexos e dependentes.
"O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais conseqüentes da sua prática" (REsp n. 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado, in DJ de 17.02.2003).
Recurso especial não conhecido." (REsp n.º 449.000/PE, Segunda Turma, Rel. Min. Franciulli Netto, DJU de 03/06/2003)
"ADMINISTRATIVO. ATIVIDADE POLÍTICA. PRISÃO E TORTURA. INDENIZAÇÃO. LEI Nº 9.140/1995. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. REABERTURA DE PRAZO.
1. Ação de danos morais em virtude de prisão e tortura por motivos políticos, tendo a r. sentença extinguido o processo, sem julgamento do mérito, pela ocorrência da prescrição, nos termos do art. 1º, do Decreto nº 20.910/1932. O decisório recorrido entendeu não caracterizada a prescrição.
2. Em casos em que se postula a defesa de direitos fundamentais, indenização por danos morais decorrentes de atos de tortura por motivo político ou de qualquer outra espécie, não há que prevalecer a imposição qüinqüenal prescritiva.
3. O dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais conseqüentes da sua prática.
4. A imposição do Decreto nº 20.910/1932 é para situações de normalidade e quando não há violação a direitos fundamentais protegidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem e pela Constituição Federal.
5. O art. 14, da Lei nº 9.140/1995, reabriu os prazos prescricionais no que tange às indenizações postuladas por pessoas que, embora não desaparecidas, sustentem ter participado ou ter sido acusadas de participação em atividades políticas no período de 02 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979 e, em conseqüência, tenham sido detidas por agentes políticos.
6. Inocorrência da consumação da prescrição, em face dos ditames da Lei nº 9.140/1995. Este dispositivo legal visa a reparar danos causados pelo Estado a pessoas em época de exceção democrática. Há de se consagrar, portanto, a compreensão de que o direito tem no homem a sua preocupação maior, pelo que não permite interpretação restritiva em situação de atos de tortura que atingem diretamente a integridade moral, física e dignidade do ser humano.
7. Recurso não provido. Baixa dos autos ao Juízo de Primeiro Grau." (REsp n.º 379.414/PR, Primeira Turma, Rel. Min. José Delgado, DJU de 17/02/2003)
Em suma, forçoso convir que a tortura é o mais expressivo atentado à dignidade da pessoa humana, valor erigido como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
Sob esse ângulo, dispõe a Constituição Federal:
"Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...) III - a dignidade da pessoa humana;"
"Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes;
(...) III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;"
À luz das cláusulas pétreas constitucionais, é juridicamente sustentável assentar que a proteção da dignidade da pessoa humana perdura enquanto subsiste a República Federativa, posto seu fundamento.
Consectariamente, não há falar em prescrição de ação que visa implementar um dos pilares da República, máxime porque a Constituição não estipulou lapso prescricional ao direito de agir correspondente ao direito inalienável à dignidade.
Outrossim, a Lei 9.140/95, que criou as ações correspondentes às violações à dignidade humana perpetradas em período de supressão das liberdades públicas, previu a ação condenatória no art. 14, sem estipular-lhe prazo prescricional, por isso que a lex specialis convive com a lex generalis, sendo incabível qualquer aplicação analógica do Código Civil ou do Decreto n.º 20.910/32 no afã de superar a reparação de atentados aos direitos fundamentais da pessoa humana, como sói ser a dignidade retratada no respeito à integridade física do ser humano.
Adjuntem-se à lei interna, as inúmeras convenções internacionais firmadas pelo Brasil, a começar pela Declaração Universal da ONU, e demais convenções específicas sobre a tortura, tais como a Convenção contra a Tortura adotada pela Assembléia Geral da ONU, a Conveção Interamericana contra a Tortura, concluída em Cartagena, e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
A dignidade humana violentada, in casu, pode ter decorrido, consoante noticiado pelo autor da demanda em sua exordial, de perseguição política que lhe fora imposta, prisão e submissão a atos de tortura durante o Regime Militar de exceção, sendo possível revelarem-se os referidos atos como flagrantes atentados ao mais elementar dos direitos humanos, que segundo os tratadistas, são inatos, universais, absolutos, inalienáveis e imprescritíveis.
A exigibillidade a qualquer tempo dos consectários às violações dos direitos humanos decorre do princípio de que o reconhecimento da dignidade humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz, razão por que a Declaração Universal inaugura seu regramento superior estabelecendo no art. 1.º que "todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos".
Deflui da Constituição federal que a dignidade da pessoa humana é premissa inarredável de qualquer sistema de direito que afirme a existência, no seu corpo de normas, dos denominados direitos fundamentais e os efetive em nome da promessa da inafastabilidade da jurisdição, marcando a relação umbilical entre os direitos humanos e o direito processual.
Ex positis, DOU PROVIMENTO ao presente recurso especial, para afastar do caso em espécie a aplicação da norma inserta no art. 1.º do Decreto n.º 20.910/32, determinando o retorno dos autos à instância de origem, para que dê prosseguimento ao feito.
É como voto.
Revista Consultor Jurídico
por Priscyla Costa
Espaço compartilhado com o propósito de auxiliar colegas, sejam estudantes, advogados ou mais especialistas que laborem amparados pelo Direito.
VOCÊ ENCONTROU O QUE QUERIA? PESQUISE. Nas guias está a matéria que interessa a você.
TENTE OUTRA VEZ. É só digitar a palavra-chave.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário